domingo, 11 de março de 2007

POR ISTO HOUVE SILÊNCIO
Alcy Araújo Cavalcante

O homem havia sido feito assim: bom, humilde, terno para viver dentro de um mundo cheio de revolta. E o mundo foi angustiando o homem, rasurando a sua ternura, arranhando a sua bondade. Por isto que o homem, vítima de muitos desencantos, começou a fazer o que não devia, a andar de cabelos ao vento, telefonar, freqüentar o cais.

A cada sofrimento, o homem fazia mais uma tolice e magoava o seu Anjo. E o Anjo, pobre Anjo aflito, chorava lágrimas imensas, que cresciam em seus olhos como pássaros de luz.

Daí então o Anjo não pôde ter mais um minuto de distração. Mal ele se distraía e lá ia o homem por aí, pés descalços, braços nus em direção ao seu desconhecido, pisando espinhos que nasciam das rosas vermelhas.

Mesmo assim o homem sabia que não estava só, como naquele começo de tarde em que teve vontade de comprar uma bicicleta azul e um cavaquinho. Sabia também que não estava só como naquele poema em que o amor morria por falta de azul e os pássaros brancos deixaram de nascer.

E por ser assim o homem falou ao Anjo que a felicidade existia. Apenas estava além das lágrimas contemporâneas, colocada depois da dor, na continuidade da espera, na renovação de todas as esperanças.

E falou isto quando as estrelas gotejavam silêncio dentro da noite. A música se enovelava no coração e o poema era uma oração nascente.

Então o Anjo pegou o homem pela mão e caminharam em direção ao mar. Foi quando Deus sorriu e achou que o que tinha feito era bom. E descansou, porque era chegado o sétimo dia e na distância Anjo e homem se integravam no azul do mar. Por isto houve um grande silêncio no coração das coisas...


Alcy Araújo Cavalcante, poeta, jornalista e escritor, nasceu no Pará em 7 de janeiro de 1924 e morreu no Amapá em 22 de abril de 1989. Fundou jornais, revistas, clubes de arte. Figura na Antologia Modernos Poetas do Amapá, na Grande Enciclopédia da Amazônia, na Brasil e Brasileiros de Hoje e na Enciclopédia Portuguesa Brasileira, entre outras. Publicou os livros Autogeografia, Poemas do Homem do Cais e Jardim Clonal. Ao morrer deixou mais de dez obras inéditas, entre elas o romance Terra Molhada e o livro de crônicas Ave Ternura.