domingo, 4 de maio de 2008

Colunistas do blog

Espelho de Sete Faces

Manoel Bispo
Insistir no lendário apesar do canário-do-reino pousado no flamboyant da praça. Conter-se fotossíntese dentro dos limites reativos entre o amarelo do abiu e a verdura intempestiva da manga-espada. Demorar-se simbiose na verticalidade áspera da bacabeira, na contrapartida dos viveiros de mudas de eucalipto atapetando o cerrado. Ser bem-vindo às páginas amareladas do que restou da lenda do boto, na terra do escritor mirim. Contentar-se com uma das margens do grande rio, enquanto ensaia o caminhar descalço sobre as águas barrentas, águas de muitos barcos e travessias. Juntar-se às andorinhas com certeza de que uma revoada de guarás, por mais vermelhos que sejam, não dá conta do recado; verão não é coisa que se faça com pouco sol.
O passo seguinte é calafetar o casco do barco, esperar subir as águas, aviar-se em terra e pôr-se ao mar. O itinerário a Deus pertence, levando-se em conta que nenhum arquipélago é tão longe, que lá não se chegue a nada ou a vela antes do fim dos tempos. É tudo uma questão de resistência física, de tempo e de brisa. Esperar por mais de vinte séculos pela colheita, como o passista espera o carnaval, como quem espera um grande amor ou sonha todas as estações num mágico instante de felicidade. Escrever-se poemas de infinitas rimas, por mais facetadas que sejam as palavras e fugidias as emoções. Certificar-se dos equívocos em torno dos conceitos consagrados, e, alargar-se no ofício de restaurados do imponderável. Calar-se principalmente quando a palavra for de dois gumes ou amargar no céu da boca. Mirar-se no espelho de muitas faces e, numa delas, ver-se imagem e semelhança do que é o sonho de todas as manhãs da vida. Ferir-se e misturar o próprio sangue ao sangue do próximo e faze-lo irmão dos elementos constitutivos da grandeza humana. Confiar em Deus. Mas, madrugar a pena sobre o papel na confeitura ternural do poema de amor. Alegrar-se com o sorriso dos velhinhos, com a simplicidade dos sábios, com a magia da fala e com as cores do silêncio e só se entristecer em caso de extrema carência afetiva. No mais é vestir-se de espelho para que o mundo inteiro venha espelhar-se em você.
(O poeta, escritor e artista plástico Manoel Bispo escreve todos os domingos neste blog)