terça-feira, 5 de agosto de 2008

Álvaro da Cunha - Um poeta a serviço do Amapá

Escrevi e publiquei este texto ano passado. Volto a publicá-lo hoje como forma de homenagear o poeta e a poesia nesta data que marca os 85 anos de nascimento de Álvaro da Cunha.
Álvaro da Cunha está vivo, muito vivo, na alma e no coração daqueles que conhecem, amam e valorizam a literatura amapaense.

“Tu sabes que onde eu for
Amapá
irá o amor
amor que a tua paisagem
de sonho acenderá
no mais profundo
e lírico sial
de que sou feito e contrafeito.
Meu olho oral
vê e fala do teu ar
do teu céu
do teu mar
das tuas florestas.”

Esta declaração de amor ao Amapá é parte do poema “Amapacanto” de Álvaro da Cunha, poeta que carregava na alma a paisagem amapaense.
Nascido em 5 de agosto de 1923 em Belém do Pará, o poeta veio para o Amapá com 23 anos de idade, onde desempenhou cargos e funções de relevo na administração, como a presidência da Companhia de Eletricidade do Amapá. Fundou e colaborou com várias revistas literárias, como a Rumo, Mensagem e Latitude Zero.
Faz parte da primeira geração de poetas do Território Federal do Amapá, ao lado de Alcy Araújo, Ivo Torres, Aluísio Cunha e Arthur Nery Marinho. Estes cinco movimentaram o setor cultural amapaense, fundando revistas, criando clubes de artes e editoras, promovendo noites lítero-musicais e cursos de teatro e artes plásticas.
Sobre Álvaro, Alcy dizia que era “ um poeta a serviço do Amapá”. Estudioso dos problemas da região, escreveu a mais importante obra sobre a exploração do manganês: o livro “Quem explorou quem no contrato do manganês”. Por causa desse livro sofreu perseguições, inclusive do governo federal, e teve que deixar o Amapá e se estabelecer no Rio de Janeiro, onde atuou no setor privado como técnico e diretor de escritórios de consultoria especializados em planejamento econômico.
Foi embora, mas não perdeu os laços com esta terra onde, segundo ele, em vez de criar poemas “recolhia-os já feitos na paisagem”.
Alcy Araújo dizia que Álvaro nunca se liberou do sol da Latitude Zero. “Álvaro não desassumiu também sua deslumbrada e aberta responsabilidade de usuário, de amante e intérprete do verde incomum da Latitude Zero”, disse Alcy no prefácio do livro Amapacanto, considerado um atlas poético dessa região. “O Amapacanto, lançado em 1989, é uma verdadeira exaltação ao Amapá”, afirma o presidente da Associação Amapaense de Escritores, Paulo Tarso.
Além de Amapacanto e de Quem explorou quem no contrato de manganês, Álvaro lançou também Pássaros de Chumbo, em 1961 no Rio de Janeiro, e figura na antologia Modernos Poetas do Amapá.
Há centenas de poemas seus publicados em jornais e revistas do Amapá, Pará e Rio de Janeiro, que deveriam ser organizados numa rica antologia para que a nova e as futuras gerações possam conhecer um dos maiores poetas modernistas da região Norte.
Álvaro Cândido Botelho da Cunha morreu no Rio de Janeiro em 22 de fevereiro de 1995.

“A gente se perdeu
Amapá e eu há muitos anos.
logo nós dois
tão semelhantes e afins
que parecíamos drágeas da mesma vagem
múltiplos mútuos
grãos germinados gêmeos um do outro”

MISERERE
(Do livro "Amapacanto")

A mulher operária tinha o ventre achatado pelo peso da fome. Levantei-lhe a cabeça, perguntei o seu nome e a sineta soou. Era a hora do almoço. A mulher abaixou-se, sacudiu o menino, o menino acordou. A mulher operária tinha o ventre achatado pelo peso da fome. Cuspiu sobre os seios – eram uns seios sem leite – e a criança mamou.
- Tomei nota em meu livro, e alguém protestou.
Outra vez fui às docas. Conversei com Maria, na “Pensão da Estiva, e Maria explicou:
O meu homem me obriga a trabalhar para ele. Chega tonto de sono, e eu tonta de amor. Nos seus lábios tem éter, licor, ambrosia, mas os beijos que trazem são beijos cansados, desses beijos pesados, de amargo sabor.
- Registrei em meu livro, e alguém protestou.
A menina passava. A roupinha de trapos, a carinha mirrada, o corpinho franzino. Dei-lhe um copo com água, pus-lhe as mãos no cabelo, e a criança chorou.
- Mencionei no meu livro, e alguém protestou.
No irmão da menina, os dois olhos abertos eram duas estrelas que a lama ofuscou. Ele estava tão sujo, e olhava o meu terno com tanto interesse, que o embrulho de peixe escorreu-lhe das mãos e ele nem reparou.
Recuei assustado; encerrei o meu livro e joguei-o nas águas, mas o livro boiou. Apanhei-o com nojo. Rasguei-o em pedaços. E a angústia passou.
- Para que registrar as misérias da vida?
- Para que registrar? ... minha voz repetia
e ninguém protestou.